Diocese de Juazeiro

Notícias da Diocese › 11/12/2018

“Raiz e semente da história”: 80 anos do massacre de Pau de Colher

Na sombra lateral de sua casa, em meio ao sertão nordestino, Seu Militão Rodrigues da Silva (foto abaixo) pega a bengala improvisada e desenha um círculo no chão de terra. Ao lado da esfera, sinaliza com algumas batidas que ali era o local onde estava a metralhadora, amarrada a uma árvore e apontada para o acampamento. O episódio ao qual se refere, com memórias tão vivas, mesmo próximo de completar 90 anos de idade, é o massacre de cerca de mil pessoas da comunidade de Pau de Colher, ocorrido em janeiro de 1938.

Sobrevivente, Seu Militão é testemunha de um capítulo de horror da história brasileira, marcado pela violência brutal do Estado, na época sob a Ditadura Vargas, e que até hoje reverbera em traumas e preconceitos.

Há 80 anos, o arraial, localizado a 98 km da sede do município Casa Nova (BA), na divisa com os estados de Piauí e Pernambuco, chegou a reunir aproximadamente quatro mil pessoas, população maior do que a própria sede do município e cidades vizinhas, a exemplo de Petrolina (PE) e Remanso (BA). No local, debaixo de um frondoso pé de juazeiro existia uma feira e importante ponto de encontro, bastante movimentado, mas os motivos dessa grande aglomeração foram religiosos e sociais.

Espaço do acampamento de Pau de Colher. O umbuzeiro ainda é da época do movimento religioso. Cruzes indicam sepulturas e o local da casa de Senhorinho. ©Thomas Bauer

A comunidade se tornou uma espécie de extensão de Caldeirão, comunidade cearense liderada pelo beato Zé Lourenço. O escritor piauiense Marcos Damasceno, autor do livro “Guerra de Pau de Colher: Massacre à sombra da ditadura Vargas”, explica que, no início, a ideia era que Pau de Colher fosse um local que selecionasse as pessoas que iriam para Caldeirão, mas, com a destruição deste em 1936, as pessoas permaneceram e os sobreviventes que seguiam Zé Lourenço se juntaram a eles.

“Então Pau de Colher se formou como uma terra sagrada, como uma terra prometida. E daqui as pessoas iam buscar alcançar as coisas do céu porque aqui faltava tudo”, comenta o escritor.  Era uma época em que imperava a injustiça social, desigualdades e opressões, marcada sobretudo pelo coronelismo. A região era esquecida pelo Estado e grande parte da população vivia em situação de extrema pobreza. A escolha de seguir o José Senhorinho, líder religioso de Pau de Colher, representava uma luta por melhores condições de vida. Pau de Colher foi um movimento camponês religioso, mas também social e político.

“Igual a melancia na pedra”

Helena Nogueira – sobrevivente da Guerra. ©Thomas Bauer

Em 1934, as pessoas começaram a chegar ao local, primeiro para participar das rezas com o Senhorinho, depois, para morar. Em 1937, o arraial atingiu sua maior população. Foi um “dilúvio de gente”, lembra Dona Helena Nogueira, sobrevivente da guerra. Homens, mulheres e crianças viviam em “latadas”, uma espécie de barraca feita com palha e varas, e faziam refeições coletivas. Comia “tudo na mão, não era colher não”, conta Seu Militão ao falar da alimentação no acampamento, que, segundo ele, era “um feijão véio mal cozinhado, sem tempero”.

Nem toda a população da vizinhança quis integrar o movimento religioso, o que gerou disputas, motivadas, principalmente, de acordo com Damasceno, pela postura do Joaquim Bezerra. O Quinzeiro, como era conhecido, assumiu a liderança de Pau de Colher após a morte do Senhorinho. Para o escritor, a história do movimento pode ser dividida em dois momentos, uma sob a liderança de Senhorinho, marcada pela vida em comunhão, partilha e rituais religiosos; e outro com o Quinzeiro, época de violência e brigas entre os que estavam dentro e fora do arraial. Essa distinção também é relatada em depoimentos dos moradores do local.

Para além das disputas internas, a multidão em Pau de Colher incomodou as forças políticas regionais. O período era de Ditadura Vargas, perseguição ao cangaço, e movimentos semelhantes como o próprio Caldeirão e Canudos haviam sido dizimados.

Quatro volantes policiais foram a Pau de Colher. A primeira, de São Raimundo Nonato (PI); a segunda, de Casa Nova, que matou o Senhorinho; a terceira, do Pernambuco, comanda pelo capitão Optato Gueiros e responsável pelo massacre da comunidade; e a última, do estado Piauí.

O ataque da polícia de Pernambuco ocorreu entre os dias 19 e 21 de janeiro de 1938. A população reagiu, lutou contra a força policial com as armas que tinham (cacetes feito de árvores), alguns conseguiram se esconder e fugir, mas a maioria não sobreviveu. Mais de 400 pessoas estão enterradas em uma sepultura coletiva localizada onde funcionava o acampamento. Estima-se que cerca de mil tenham morrido no massacre, atingidos pelas armas e também de fome e sede na caatinga.

Francisco do Nascimento, filho de sobrevivente. ©Thomas Bauer

“Diz minha mãe que ficou lá o campo igual melancia na pedra”, relata o lavrador Francisco do Nascimento, nascido em Pau de Colher. Ele conta que sua mãe, Dona Ângela, 92, sobrinha do Senhorinho, enquanto fugia do ataque policial com a família, viu sua irmã mais nova morrer em seus braços com um tiro na cabeça. A brutalidade da ofensiva policial foi tamanha, que Dona Gildete Justiniano, nascida no ano do massacre, e que perdeu avó e tios na guerra, diz que “até tem hora que pensa que [a guerra] é um sonho”.

Para o lavrador Gregório Manoel Rodrigues, 73, nascido na comunidade, “eles morreram tudo de injusto. A polícia não era pra ter matado aquele povo. Era pra ter pegado e ver o que eles queriam”.

No vídeo, Seu Militão conta como ele e sua família conseguiram sobreviver ao massacre:

Invisibilidade da luta popular

Quem chega na comunidade formada por cerca de 40 famílias, se depara com aqueles que têm orgulho de dizer que são “raiz e semente da história” e outros que evitam ao máximo tocar no assunto. A história da luta do povo por dignidade e pela sobrevivência diante da negação e violência do Estado foi ocultada. Prevaleceu a versão de um povo sem propósito, violento e fanático.

“Ainda hoje tem gente que tem preconceito com isso aqui, tem umas pessoas que não quer nem que falem das pessoas daquele tempo”, comenta Gregório Manoel. Por muito tempo as pessoas utilizavam o nome da comunidade no sentido pejorativo, para adjetivar negativamente outras situações. “Lá vai virar um Pau de Colher”, conta Francisco do Nascimento. “Usavam o nome daqui pra poder chocar os outros”, complementa.

O historiador e professor da Universidade de Pernambuco (UPE) Moisés de Almeida afirma que em quase todos os eventos em que ocorrem massacres há a tentativa de apagamento, de esquecimento da memória. Almeida desenvolve pesquisa sobre a narrativa dos jornais de Pernambuco sobre os movimentos sociais, entre os anos de 1896 a 1938. Segundo o historiador, a imprensa do período trata as lutas de Pau de Colher, Canudos e Caldeirão como atentados ao regime.

Para a imprensa “é uma população que se rebela contra o governo, contra o Estado e o Estado precisa neste caso agir, agir fortemente contra a população”, destaca o professor que acrescenta que “a imprensa, inclusive, vai dizer que para fera não existe outra solução que não a bala ou a faca”.

Resgate da memória

Seu Gregório e o escritor Marcos Damasceno no local do acampamento. ©Thomas Bauer

Após 80 anos da Guerra do Pau de Colher ainda encontramos objetos da época no local do acampamento, a exemplo de balas. Não existe museu ou memorial na comunidade. A memória e a história são preservadas pelos próprios moradores, que são os responsáveis por capinar o acampamento, manter conservadas as sepulturas e guardar os objetos antigos.

À espera da construção de um museu, a família do Seu Gregório guarda como se fosse um tesouro as balas, talheres, pedaços de vidro, moedas e cachimbos encontrados. “O poder público acabou, matou o povo, eles tinham o direito de construir e entregar propovo”, afirma Gregório ao falar sobre o desejo da construção de uma estrutura física.

O Estado, que despreza a história, continua a negar o local, mas a população permanece resistindo. Desde 2003, a comunidade realiza, todos os anos, uma romaria. “É de muita importância, porque se não o lugar tava acabado. Todo mundo fala na romaria, se não tivesse a romaria ninguém falava”, diz Gregório.

14ª Romaria de Pau de Colher. ©Thomas Bauer

Realizada junto com a Paróquia São José Operário e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Romaria de Pau de Colher acontece todo dia 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. “Até o ano de 2003 o pessoal tinha um trauma daqui, mas agora o pessoal  atentando pravalorizar a história do Pau de Colher”, aponta Francisco. É também a partir desse período que tecnologias sociais chegaram, a exemplo das cisternas de captação de água de chuva para consumo humano e produção, e algumas instituições passaram a atuar na comunidade, possibilitando melhores condições de vida para população.

Entre os moradores do município de Casa Nova é comum encontrar pessoas que desconhecem a história de Pau de Colher ou que a associam apenas a uma visão negativa da comunidade. Com o objetivo de mostrar uma nova visão do movimento religioso e social, uma turma de estudantes do Colégio Antônio Honorato desenvolveu um projeto sobre a história local. Eles realizaram uma pesquisa com a comunidade escolar e descobriram que apenas 4% dos estudantes, professores e servidores do Colégio tinham conhecimento sobre a Guerra de Pau de Colher.

Estudantes do Colégio Antônio Honorato desenvolveram projeto de pesquisa sobre a história da Guerra de Pau de Colher. ©Thomas Bauer

A partir desse dado, os estudantes foram até a comunidade, conversaram com os moradores e produziram uma série de materiais, como um álbum de fotografias, perfis de redes sociais online e um documentário. “Foi muito importante para trazer a história de Pau de Colher para que se torne patrimônio da escola, para ela ser mais conhecida, porque é uma história muito desconhecida e tem sua versão muito distorcida pela população casa-novense”, avalia a estudante do 1º ano do ensino médio Jailane Braga.

Para Átila Ramon Gomes, também estudante e integrante do projeto, os materiais que eles produziram “estão sendo usados como meio para contar uma nova versão da história e mostrar realmente como que aconteceu, que não foi só o que eles pensam, mas que tem um outro lado da história”.

Texto: Juliana Magalhães/CPT Bahia

Fotos e vídeos: Thomas Bauer/CPT Bahia

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